Direito para um cientista da computação
Quando comecei a estudar Direito por conta de um concurso, recebi vários alertas de que esse curso é de humanas, não de exatas, e que, por isso, seria bem diferente da minha graduação (feita em Ciência da Computação). No entanto, para minha surpresa, em alguns pontos, Direito é tão ou mais matemático do que Computação! Neste artigo justifico minha tese.
Direito para um cientista da computação
Você já ouviu um papo de que em ciências humanas não tem resposta certa ou errada como na Matemática? Direito é uma ciência humana, logo, deve seguir essa regra, não é?
Para mim, até agora, não. Não estou falando que é um curso de exatas, longe disso, mas até aqui, fazendo Faculdade de Direito, tenho visto muita lógica nos conhecimentos que estou adquirindo.
Nas provas, o que acontece é que algumas perguntas aceitam mais de uma resposta correta, mas desde que cada uma seja devidamente justificada. A argumentação que sustenta uma resposta é um ponto central no Direito, mas é possível avaliar se uma resposta está correta ou não. Se nela há argumentos válidos para uma resposta coerente, está correta, caso contrário, não está. Em outras palavras, existe resposta certa e errada para a maioria dos pontos estudados. As questões que não têm, normalmente, envolvem temas de discussões profundas, mas na prática, muitas vezes o ponto passa a ser certo ou errado de acordo com o entendimento do STF.
Portanto acho mais sensato o pensamento de que em humanas temos, em geral, mais de uma resposta correta. Em geral porque, as vezes, só temos uma mesmo, assim como na matemática. Para entender isso em detalhes, continue lendo.
1. Primeiro contato com o estudo de Direito
Em 2018 tive a oportunidade de participar do meu primeiro concurso público: Perito Criminal Federal, área de TI. No entanto, além de tecnologia, foram cobrados conhecimentos de Direito Penal, Administrativo e Constitucional. O edital dizia que na prova caíam “noções”, mas a verdade é que os conhecimentos cobrados são de quem já estudou 1 ou 2 anos essas disciplinas. Contei em detalhes essa experiência aqui.
Assim, passei a estudar Direito por conta, seguindo instruções de familiares e amigos da área. Como o estilo da prova era de verdadeiro ou falso, banca CESPE, a parte difícil era interpretar os enunciados e julgá-los, diferente de uma questão de múltipla escolha em que é possível eliminar alternativas aparentemente erradas.
À medida que estudava, notava que algumas questões exigiam pouca ou nenhuma interpretação. Eram questões praticamente literais, que reproduziam um texto legal (da Constituição Federal ou de alguma lei). Esse tipo de questão me parece bem com a matemática, mas com textos no lugar de números. O candidato tem que conhecer muitas palavras em português, sinônimos e antônimos, para entender quando a banca troca palavras tentando apenas confundir (e mantendo o sentido) ou inverter o sentido de algumas palavras em relação ao texto original.
2. Autonomia da vontade vs Princípio da Legalidade
Ainda na fase de estudo por conta, me deparei com um conhecimento que tem a cara da Teoria de Conjuntos da Matemática. Porém, antes, para quem não é da área de Direito, é preciso explicar dois termos que aparecem com frequência:
- Leia particular como uma pessoa da sociedade que não represente a administração pública ou o governo. Por exemplo: eu. Não trabalho para a administração pública diretamente ou indiretamente.
- Estado (com a letra inicial maiúscula) pode ser pensado como o Brasil, o país, a nação, ou seja, a união entre os 27 estados-membros (ou só estado, minúsculo) do Brasil, com seus respectivos municípios. Tecnicamente, em Direito, Estado é definido como instituição política constituída por um território, povo e poder, e com a finalidade da supremacia do interesse público.
Agora, vamos para o conhecimento, que pode ser representado pelo seguinte texto: “Para o particular é permitido fazer tudo o que não estiver proibido por lei”. Ou seja, tirando o que está proibido em lei, posso fazer o que eu quiser, o que me der vontade, e é isso é chamada de autonomia da vontade.
Já o Estado (novamente, com E maiúsculo, nesse caso o Brasil), representados por seus agentes públicos, só pode fazer o que a lei determinar. Lei no sentido amplo, de representar qualquer norma jurídica (Constituição Federal, lei complementar, lei ordinária etc). Assim, o Estado não pode fazer o que quiser. Ele só pode agir dentro dos limites previstos e estabelecidos em lei. Essa característica é conhecida como Princípio da Legalidade.
Percebam, portanto, que a lei é o limite tanto para particulares quanto para agentes públicos. No entanto, o primeiro vive com autonomia de vontade, pode tudo, menos o que não puder em lei, enquanto o segundo, não pode manifestar vontade, mas sim agir conforme estabelecido em lei.
3. Traduzindo para matemática
Considere:
— O conjunto Particular, formado pelas pessoas.
— O conjunto AdmPub formado pelos agentes públicos.
— x uma variável que representa uma ação qualquer que pode ser feita por uma pessoa
— y uma variável que representa uma ação que pode ser feita por um agente público
— L o conjunto de todas as normas jurídicas do país e
— N o conjunto inverso de L, ou seja, o conjunto de tudo que está proibido por lei.
Assim, o conjunto Particular contém todas as ações que eles podem fazer, ou seja, pode fazer qualquer x, desde que x não pertença ao conjunto N. Matematicamente, fica:
Particular = { x / x ∉ N}
Obs.: A barra (/) é lida como “tal que”, expressando uma condição.
Já as pessoas que representam o Estado, contidas no conjunto AdmPub, podem fazer apenas as ações y, desde que y pertença a L. Dessa forma, temos:
AdmPub = { y / y ∈ L}
Parece leviano e simples, mas você consegue acertar algumas questões só sabendo isso. Exemplos:
- “Pode o Estado eliminar um candidato de um concurso por ele ter tatuagem mesmo sem estar previsto em lei?”
- “Pode o Estado determinar um comportamento do cidadão que não exista normal legal vinculada?”
- “Pode o Estado impor indenizações por vontade própria, sem que haja força de norma?”
Naturalmente, todas são assertivas erradas. O que acontece é que a palavra lei pode expressar diferentes sentidos: amplo e estrito, e ainda, possui diversos sinônimos: norma legal, norma jurídica, força de norma, texto legal. Cada palavra pode ter diferenças técnicas, mas em um contexto mais macro, são usadas como sinônimos.
4. Situações binárias e equações no Direito
Assim que entrei na faculdade, em diferentes disciplinas, novamente ouvi bastante aquele papo que introduzi o artigo: “Em Direito, não tem resposta certa ou errada, tem a resposta e sua justificativa, seus fundamentos”. É claro que os professores estão empenhados em romper os paradigmas dos alunos que acabaram de sair do ensino médio e fazê-los pensar fora da caixa, mas não posso deixar de notar quando um conceito é bem lógico e matemático.
Aos poucos, alguns professores começaram a fazer algumas observações nesse sentido. Em Direito Penal, por exemplo, o professor disse algo como:
“É claro que, quando é uma regra, por exemplo uma norma no Código Penal, ou se enquadra, ou não”.
Ah, que interessante não é. Temos algo bem parecido com o binário aqui: 0 ou 1.
Pouco depois, em uma aula de Direito Constitucional, a professora escreveu no quadro:
NJ = P + R
Ela mesmo escreveu assim, mas no caderno, escrevi a fórmula com os nomes completos:
Norma Jurídica = Princípios + Regras.
Pouco depois, quando ela deu a definição de Estado que apresentei acima, ela fez outra fórmula:
Estado = Território + Povo + Poder e ainda falou uma frase (que pareceu um comando mnemônico da linguagem de programação Assembly) para gravarmos: Te-Po-Po.
5. Estrutura de Dados em Direito
Em Computação temos diversas estruturas de dados: vetores, matrizes, árvores, listas e outras. Em Direito temos princípios e regras. Regras são comandos, pois representam determinações. Existe uma hierarquia de regras conhecida como Pirâmide de Hans Kelsen que determina qual lei está acima de qual. Na verdade, este autor criou a chamada Teoria Pura do Direito que deu origem a diversos avanços no Direito e, entre eles, a hierarquia de normas que mais tarde foi chamada de Pirâmide de Hans Kelsen. Falo mais disso aqui. Por ora, importante saber que, no ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal (CF) está no topo da pirâmide e tudo que vem abaixo dela são leis infra-constitucionais. Assim, não pode uma lei afrontar algum princípio ou regra que já conste na CF.
As normais jurídicas, desde a Constituição Federal até o mais elementar ato legal infra-constitucional (abaixo da constituição na pirâmide), são organizadas em uma estrutura bem definida:
- Artigo
- Parágrafo (ou inciso)
- Inciso
- Alínea
- Item
A abreviação art. é usada para artigo, o parágrafo usa o símbolo § e inciso usa números romanos (I, II, III, IV, V etc). Na Constituição Federal as alíneas são os menores elementos que podem ser alterados via Emenda Constitucional (EC), ou seja, não é possível mudar só uma palavra ou um item da CF em uma EC, mas uma alínea sim.
Existe ainda uma lista mais completa, que começa em Parte e termina em Item. Essa metodologia está regulada na Lei Complementar 95/1998, que trata das normas para a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. A lista pode ser vista na imagem abaixo e o slide 39 do material de Newton Tavares Filho ilustram o padrão. O link para essas fontes está também na seção Referências.
6. Exemplos e Contra-Exemplos
Naturalmente, os pontos aqui explicados representam apenas uma amostragem. Trata-se de um rol não exaustivo, ou seja, tenho muitos outros exemplos que podem ser dados para sustentar os aspectos matemáticos e lógicos que estão presentes no Direito. Deixarei eles para futuros posts.
No entanto, também já aprendi muitos contra-exemplos, situações em que realmente a matemática não vale muito (mas a lógica sim!). Falo mais disso aqui.
Referências
[1]- Lei Complementar nº 95 de 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp95.htm>. Acesso em: 06 de mar. 2019.
[2] – A Consultoria Legislativa de Portas Abertas. Disponível em: <aqui>. Acesso em: 06 de mar. 2019.